quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Neuroses Eclesiásticas (continuacao 2)

É verdade que entre os irmãos neopentecostais as pregações têm algumas características próprias, criando um clima parecido com o do Êxodo, em que Israel saiu do Egito e está a caminho de tomar posse da Terra Prometida. Mas o efeito sobre a audiência, apesar das grandes diferenças externas, internamente é semelhante: os irmãos neopentecostais são compelidos a virem à frente receber uma unção do pastor/pregador para que sua vida melhore (até o domingo seguinte, quando o procedimento será repetido); já os pentecostais e tradicionais saem do culto compenetrados com alguma virtude que ainda lhes falta.

Voltando à figura do estádio de futebol: os pastores sabem que esse jogo não é apenas para os 22 em campo e não se conformam com a falta de participação da audiência. Essa frustração com a igreja transparece em muitas pregações.

As frases mais ouvidas são de necessidade de compromisso, de seriedade, de obediência (às vezes em troca de proteção ou bênção). O sentimento transmitido é que Deus lá do alto está insatisfeito com você; você precisa se dedicar mais, ou ler mais a Bíblia, ou orar mais; ou evangelizar mais; ou jejuar, ou combater mais o pecado; etc., etc.

Até coisas prazerosas foram transformadas em dever. Amar aos irmãos, ter comunhão com Deus, ajudar a diminuir sofrimentos dos outros, tudo é lido e ouvido sob a ótica do dever, do mandamento a ser obedecido. Recentemente examinei a revista de Escola Dominical de uma grande denominação evangélica. Fiquei impressionado como tudo o que estava escrito no trecho bíblico estudado (além de muita coisa que nem estava no texto) era transmitido como se fosse o 11o. e o 12o.mandamentos.

Provavelmente aqui estamos em contato com uma importante fonte de nossos problemas. Quem atendeu ao apelo que dizia “Vinde a mim, vós que estais cansados e sobrecarregados, e achareis descanso para vossas almas”, agora só ouve mensagens (pregadas em nome do mesmo Deus) que exigem mais empenho, mais engajamento, mais esforço... Cadê o descanso prometido?

No meio de tantas cobranças, ainda somos levados a cantar “Satisfação é ter a Cristo, não há maior prazer já visto” (ou versões mais modernas da mesma mensagem). E ainda insistem para cantarmos com entusiasmo! Isso não pode ser saudável...

Aproveitemos e examinemos um pouco também dessa área das nossas igrejas:

3. O Clima do Louvor e Adoração

Também aqui encontraremos, dito de forma simplificada, pelo menos dois formatos diferenciados (vejam novamente nossa “capacidade” de nos dividirmos): o formato “tradicional” e o “avivado” ou pentecostal. E tentando ficar no meio do caminho, algumas igrejas “modernas”, mais tradicionais na teologia, porém informais no culto.

No formato tradicional, o louvor em nossos cultos é utilizado para a transmissão de mensagens. É a forma musicada de expressarmos as mesmas coisas que são pregadas, uma espécie de continuação (ou complemento) da pregação falada. Os que tocam e cantam sentem que estão fazendo “a obra do Senhor”, e se dedicam - às vezes dramaticamente - a fazê-lo.

O canto congregacional também é um complemento da mensagem pregada, com os hinos escolhidos do hinário daquela denominação, de forma a trazer mensagem coerente com o que estiver sendo dito no culto. E todas partes musicadas são previamente programadas, com raras exceções. Para os mais jovens, cânticos mais recentes com letra projetada em tela e instrumentos eletrônicos; para a geração dos pais e avôs, hinos acompanhados ao piano ou órgão.

Com o passar dos anos, o entusiasmo pelos cânticos diminui, possivelmente pela mesmice.

Mais um episódio desta reflexão, que pode escandalizar alguns, mas, se recebido como uma reflexão útil para analisar nossas práticas mecanicistas, pode gerar um belo fruto: liberdade verdadeira. Acompanhe os posts antigos, pelos links abaixo, caso não lembre das últimas neuroses.

No formato avivado, mais comum no meio pentecostal, existe um “momento de louvor” de longa duração (geralmente uma hora inteira). Ele tem uma finalidade diferente: servir de “desafogo” das tensões; a palavra de ordem é “celebração”. O canto e o acompanhamento musical são geralmente ensaiados e performados por um grupo grande, que, escorado na amplificação do som, faz com que a música e as canções “encham” o ambiente, enlevando o público presente (ao mesmo tempo em que afasta e irrita os vizinhos...).

Assim o povo, sempre em pé, é levado a sentir emoções através da música, praticamente da mesma forma que as grandes bandas de rock secular procedem em seus shows. Na igreja, porém, são inspirados sentimentos de pertencer a Deus e a Sua família, sentimentos de alegria e participação na glória vitoriosa de Deus. O altíssimo volume da música, aliado aos comentários incentivadores dos ministrantes, dirige esse “sentimento coletivo”. E a insensibilidade para com os vizinhos fica escancarada, no máximo disfarçada de “querer encher a cidade com nossas verdades”, mas na prática está claro que não nos interessamos por eles como pessoas.

Nesses cultos, o louvor (freqüentemente confundido com adoração) tem um sentido próprio, uma unidade fechada em si mesma, independente também da pregação que o sucederá. É como se Deus fosse transmitir duas mensagens por culto (e ainda uma terceira, em caso de haver testemunhos pessoais), sem falar da hora da contribuição financeira. Mas um traço é comum em todos os lugares que praticam esse estilo de louvor: há pouco ou nenhum lugar para contrição e tristeza. A impressão, praticamente se contrapondo às mensagens pregadas, é que Deus sempre espera que estejamos alegres, domingo após domingo.

Essa “injeção de ânimo” ajuda e abençoa a muitos crentes que por ela esperam. Mas com o tempo, como com qualquer remédio ou droga de uso muito repetido, muitas pessoas vão percebendo que seus estados de espírito “reais” não são bem-vindos. E a decepção piora as coisas porque, ao perceber essa menor mobilização da platéia, o dirigente do louvor lançará mão de recursos tais como: “levante-se, abrace seu irmão ao lado e diga: Deus te ama”.

Naturalmente o dirigente tem a melhor das intenções, mas ele está manipulando a congregação, e se deixando guiar pelos seus próprios sentimentos e limitações (no caso deste exemplo, provavelmente será a sua necessidade pessoal de ver seu trabalho fazendo todo mundo feliz e se abraçando). Como conseqüência, é encorajada uma artificialidade dos relacionamentos, e o aspecto exterior (comportamento) substitui o interior (coração). Por mais que cantemos e repitamos a frase bíblica, não estaremos adorando “em espírito e em verdade”.

Freqüentando um ambiente assim enquanto vivem sua vida cotidiana, como estará o íntimo dos cristãos?

4. O clima no coração dos cristãos

Convido você, leitor e leitora, a olhar para dentro de si mesmo, até para ver se minha observação coincide com a sua:

Imagine Deus olhando para você agora (experimente fechar os olhos por um instante) Qual seria a expressão do rosto dEle? Ao olhar para você, Deus parece feliz, sério ou triste?

Como na verdade não vemos a face de Deus, podemos dizer que nossa imaginação é uma boa medida de projeção da nossa imagem de Deus. Ou do “nosso Deus”, por assim dizer, que fomos criando e internalizando conforme vivemos no ambiente da igreja e da família.

Outra pergunta que pode nos ajudar: qual é a sua principal preocupação perante Deus? Ao estar consciente da presença de Deus, do que você lembra? Que tipo de oração você faz mais freqüentemente?

Todas essas perguntas geralmente mostram que estamos preocupados em não errar. E que, tal qual nas pregações dominicais, Deus parece sempre insatisfeito, esperando alguma melhoria de nossa parte. Em algumas denominações, esse cuidado em não errar adquire tons mais dramáticos porque, atrás da esquina, ainda nos espreita o terror da perda da salvação.

Nós cristãos, temos medo de errar, de tomar decisões erradas. Nos dedicamos a combater o pecado. Por isso, naturalmente, temos receio de nos envolver com iniciativas de outros grupos, especialmente se forem de fora da igreja. Nossa maior preocupação, nossa maior busca, é por saber “a vontade de Deus”. A supremacia em nosso coração é do DEVER: o que é que eu devo fazer? O que é certo?

Perguntas como “crente pode isso?” ou “É pecado tal coisa?” revelam o mesmo sentimento, e a nossa preocupação mais íntima: temos medo de errar. Por isso, a não ser que tenhamos certeza de que aquilo é a vontade de Deus, melhor não fazer. Certo?

5. A qualidade de nossa membresia - a roda viva

Ao mesmo tempo em que estamos preocupados com não errar, essa pergunta de “o que é que eu devo fazer” encontra resposta rápida na igreja. Parece que, na falta de bons relacionamentos, que dêem prazer simplesmente por estarmos juntos, nos dedicamos a criar várias atividades na igreja, que nos mantenham sempre ocupados e “produtivos”. Assumir cargos na estrutura da igreja é uma velha forma das igrejas tradicionais engajarem alguém. Já as igreja pentecostais multiplicaram o número de cultos, seja no templo, seja nos lares, também como forma de manter participantes um maior número de pessoas.

Na igreja tradicional “precisamos” de pessoas para cantar nos corais, para distribuir folhetos de casa em casa, para dirigir ou auxiliar em diversos departamentos, com atividades no sábado e em todo o domingo. Nas comunidades pentecostais, as pessoas “precisam” comparecer aos cultos quase todos os dias da semana, com destaque para a participação na equipe de louvor. Ambas as igrejas formaram uma espécie de “grade de programação” que precisa ser preenchida (e acompanhada) pelos membros.

É uma espécie de roda-viva, como aqueles moinhos dos tempos antigos, empurrados por animais ou por escravos, em que a pessoa era acorrentada a seu tronco para empurrar sem cessar, e sem poder sair. Geralmente a gente só percebe a loucura desse ativismo quando o vê de fora. Para quem está nos papéis centrais, como os pastores, só dá para pensar na próxima “necessidade” a ser preenchida (precisa alguém para trazer a palavra, alguém para dirigir os cânticos, alguém para dirigir a oração, alguém para dar os avisos, etc, etc, etc,).

Para pessoas que vivem solitárias ou não têm bom relacionamento familiar, a igreja com tantas reuniões acaba até ajudando a suprir a carência de relacionamentos. Mas para aqueles que têm vida em família, a igreja acaba prejudicando a qualidade de relacionamentos, por praticamente não permitir que façam programas entre si (nos sábados, jovens e adolescentes têm atividades; nos domingos, a obrigação é todos estarem na igreja - e novamente divididos por faixa etária).

Quando é que pais e filhos podem passear, ter lazer em conjunto? Durante a semana, quando todos têm escola e trabalho?

Toda essa participação em cultos e atividades é ensinada como sendo “para Deus”. Dedicar seu tempo para Deus (na verdade, “para a igreja”), então, acaba sendo entendido como retirar tempo de convívio com seus familiares, e utilizálo para as atividades da grade de programação da igreja.

É claro que alguma dedicação é positiva, e faz bem para nós próprios também; mas com esse nível de ativismo de nossas igrejas não é de admirar que pouco ouvimos falar de versos da Bíblia tais como I Timóteo 5.8: “Se alguém não cuida dos seus, e especialmente dos da sua família, tem negado a fé, e é pior que um incrédulo”.
Muitas vezes, na ânsia por obedecer e por fazer a vontade de Deus, temos praticado o mesmo pecado que Jesus condenou nos fariseus: em vez de cuidar dos nossos familiares, dedicamos “a Deus” nosso tempo e dinheiro (na verdade, dedicamos à igreja), e descuidamos da família. A começar por nós pastores...

DIAGNÓSTICO TENTATIVO

Depois de termos investigado essas cinco áreas, e especialmente o nosso coração, acredito que podemos tentar um diagnóstico da principal causa de nossos problemas, possivelmente também a causa da crise da igreja.

Dito pura e simplesmente, o mal de que nós cristãos sofremos é o medo. Ou então, para utilizarmos as palavras de João: o sentimento de que “sobre nós permanece a ira de Deus”. Há várias outras opiniões sobre qual seria a necessidade ou a situação da igreja brasileira, e muitas delas são pertinentes.

Uma corrente crescente em nosso meio crê que o problema da igreja é a excessiva facilidade oferecida no cristianismo atual, o foco em bênçãos materiais e outras vantagens e conquistas para esta vida, não havendo mais nenhum resquício do necessário temor de Deus. Eu não discordo desses irmãos, e também penso que muito do que se prega por aí não é o evangelho, mas apenas “marketing” de coisas agradáveis, para “servir ao próprio ventre” e não à cruz de Cristo.

Neste trabalho aqui, porém, estamos procurando outra perspectiva para nossa análise: buscamos o caminho do coração, buscamos entender as motivações que nos levam a fazer, falar, ou a não fazer nem falar. Mais importante do que a obediência é discernir a razão da obediência, ou melhor ainda, o sentimento que nos leva a viver e agir dessa ou daquela forma. Assim, textos como: “Deus ama ao que dá com alegria”, “graças a Deus que obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes entregues” e outros semelhantes são nosso norte neste diagnóstico tentativo.

E nesse diagnóstico o sentimento que mais temos encontrado – em relação a Deus – é o medo. Isso precisa ser trazido à tona e tratado, senão acabará anulando e desqualificando qualquer obediência, a exemplo da igreja de Éfeso nas cartas do Apocalipse: ela tinha muitas obras, muita perseverança e firmeza, mas perdeu o elemento vital, que é o amor a Jesus.

Quem gostou dos excertos publicados, deve procurar o livro do pastor, teólogo e psicólogo Karl Kepler, chamado Neuroses Eclesiásticas e o Evangelho para Crentes.

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